sábado, 25 de março de 2017

Reflexões sobre o filme Erin Brocovich - uma mulher de talento



A minha primeira experiência dentro do curso de especialização Gestão em Vigilância Sanitária (GVISA) foi encarar o filme "Erin Brockovich - uma mulher de talento".

Não tenho muito apreço por filmes baseados em fatos reais, principalmente se forem hollywoodianos, e principalmente se abordarem a história de alguém que prosperou na vida. Na minha humilde opinião, filmes do tipo mascaram os aspectos mais cruéis da realidade social, a partir de conceitos motivacionais e consoladores como: "quem acredita sempre alcança".

O aludido filme trás a história de Erin Brockovich, mãe solteira de três filhos, que acumula alguns fracassos: demissões, divórcios, relação conflituosa com os outros e consigo mesma, um carro velho, uma casa velha e babás ruins para os seus filhos.

Mas essa protagonista corajosa consegue vencer na vida, caso contrário sua história não seria reproduzida para o mundo encenada pela célebre Julia Roberts.

E como vence? Por se tratar de um clichê piegas, pode-se resumir a história em poucas linhas: um pequeno acidente de trânsito em momento difícil de sua vida; o encontro de destinos entre uma mulher desesperada e um advogado com carreira apática; a compaixão da protagonista para com famílias vítimas de um escândalo ambiental; a obstinação em ajudá-las (unido ao desejo de se destacar na vida), que faz Erin deixar de lado momentos felizes com seus filhos e companheiro; algumas lições de moral, frases de efeito e lágrimas de sofrimento; e, finalmente, a vitória. Ao final, a corporação que poluiu a água e adoeceu famílias é condenada a pagar uma indenização milionária.

Nem por isso o filme não fornecesse bons ensinamentos, principalmente com relação às coisas que ele não procura enfatizar, ou que ficam mascaradas por um roteiro que preconiza aspectos motivacionais egocêntricos.

A primeira grande questão se refere à  ausência do poder público nos destinos da população. Frise-se que os únicos momentos em que o Estado mostra sua face se referem aos julgamentos do acidente de trânsito e no do escândalo da água tóxica.

Não existe qualquer referência à fiscalização preventiva do poder público com relação à qualidade da água. Não existe nenhum pronunciamento do governo com relação ao escândalo. É  a própria protagonista que faz coletas de água no sistema de tratamento da empresa ré, a partir de invasões ilegais à sua propriedade. Ela também conseguiu furtar documentos da corporação, seduzindo o responsável pelo setor de arquivamento. Enfim, os fins justificam os meios.

Cumpre destacar que, caso o Estado atuasse a partir de suas prerrogativas de interesse público, não veríamos invasões, furtos, insinuações sedutoras. Poderiam, ainda, identificar o real alcance dos danos à  saúde, através  de técnicas muito mais eficazes que as batidas de porta em porta por somente uma pessoa.

E mais: uma única mulher não precisaria ser onerada para cuidar de mais de 600 casos, deixando família e companheiro de lado. O trabalho poderia ser distribuído entre diversos experts, que trabalhariam apenas nos  horários correspondentes à sua jornada de trabalho, sem necessidade de sacrificar sua saúde, sua família, seu casamento.

Mas essa o sucesso retratado na história é acima de tudo um sucesso individualista. Sacrifica-se momentos familiares, valores como honestidade e o mínimo de pudor, a própria saúde (através de noites perdidas e angústias vividas)... tudo em nome do sucesso final: o nome Erin Brockovich em um cheque de 2 milhões de dólares,  na placa de um promissor escritório de advocacia e no título de um blockbuster.

O atual momento de crise social que marca o Brasil, marcado por uma grande pressão do capital privado sobre o interesse público e sobre a própria noção do que seria o "público", o exemplo trazido pelo filme Erin Brockovich é extremamente inoportuno, pois difunde a ideia de que valores individualistas são suficientes para solucionar as graves mazelas sociais.

O modelo de conquista e sucesso trazido no filme na verdade é uma grande derrota do ponto de vista social e ambiental, por diversos motivos. Primeiramente, na dinâmica social exemplos como os de Erin são extremamente raros. A própria noção de sucesso significa não apenas a superação de obstáculos, mas a própria noção de se colocar sobre os outros, ou, como a protagonista falou, “de ver as pessoas se calarem quando eu falo”, de sobreviver a qualquer custo.

Depois, pelo que dizem, nem tudo na vida se resolve com dinheiro, principalmente quando tratamos da vida de pessoas e do próprio equilíbrio ambiental. Para uma empresa de 28 bilhões de dólares, o valor de 333 milhões, por maior que seja, não parece ser o bastante para causar comoções internas. A prova disso é que recentemente a PG&E foi acusada de contaminar mais uma vez as águas por ela administradas.

E, finalmente, antes de concluir devo enfatizar que minha crítica não recai propriamente sobre Erin. Ela foi apenas uma peça no jogo da sobrevivência social, que teve muitas poucas escolhas a tomar. Apenas acredito que deveríamos lutar por um modelo de sociedade onde as conquistas desse tipo pudessem ser acompanhadas de bons valores, da convivência com os que amamos e com a noção de que o nosso esforço está a serviço de todos.


Para quem vivencia as dificuldades do setor público, sobretudo nas áreas ligadas à regulação estatal, os valores defendidos pelo filme pouco guardam ligação com aquelas competências que devem ser desenvolvidas pelos servidores públicos. 

Em tempos de desregulação estatal, o grau de persistência dos servidores deve ser o mesmo que o de Erin Brockovich... mas a direção para que se volta essa persistência deve ser oposta. Ao invés de uma via individualista, a persistência deve se destinar ao resgate do coletivo.

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